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Terça, 18 Setembro 2018 11:43

Ciência descarta a 'hipótese Deus', diz filósofo italiano

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Deus é uma hipótese desnecessária, pois o surgimento do cosmos e da vida são demonstráveis através de proposições explicadas pela ciência, afirma em entrevista por e-mail o filósofo italiano Paolo Flores D’Arcais (foto). Para dar sustentação ao seu argumento, vale-se da “Navalha de Ockham”, conceito criado pelo filósofo medieval cristão, o inglês Guilherme de Ockham, para assinalar que pluralidades não devem ser postas sem necessidade. “O relativismo dos valores é uma consequência lógica do ateísmo”, completa. Em seu ponto de vista, “a inteira história humana é, de fato, diacrônica e sincronicamente um gigantesco afresco de valores relativos, incompatíveis uns com os outros”. Dessa forma, o relativismo de valores é um fato, o que não implica, necessariamente, o niilismo, “que consiste em considerar todos os valores como equivalentes”. Para D’Arcais, não há sentido na pergunta “no cenário ocidental de relativismo dos valores, qual é o espaço para a solidariedade e a tolerância?”. 
 
Outro tema debatido pelo italiano é a “revanche Deus”: “Quando diminui a esperança terrena na luta política e social, é natural que retorne o seu sub-rogado celeste. O fenômeno da ‘revanche de Deus’ diminuirá tão logo tornem maciças as lutas pela democracia radical, com perspectivas críveis de sucesso ao menos parcial”. O terreno comum entre cristãos e ateus “não depende da fé, mas das escolhas ético-políticas de cada um, seja ele ateu ou crente”, define. D’Arcais é diretor da revista MicroMega, colaborador dos jornais El País, Frankfurter Allgemeine Zeitung e Gazeta Wyborcza. Professor e pesquisador na Faculdade de Filosofia La Sapienza, da Universidade de Roma, escreveu sua tese de doutorado sobre Adam Smith e Karl Marx. Considerado um dos mais importantes críticos de esquerda da Itália, escreveu vário livros.

A Entrevista

Há algum nexo causal entre ateísmo e relativismo de valores?

O ateísmo é a simples constatação que: 1) a história inteira do cosmos, do Big Bang até hoje, o nascimento da vida sobre o planeta Terra e a evolução da vida da lombriga até o homo sapiens, são perfeitamente explicados pela ciência, sem necessidade de recorrer à “hipótese Deus” (e segundo a “navalha de Ockham”, é sempre filosoficamente inaceitável levantar a hipótese de uma causa oculta quando já temos explicações suficientes). E que: 2) o cérebro do homo sapiens é somente uma evolução e modificação do cérebro de um macaco, e todas as partes de um cérebro se desfazem com a decomposição que segue a morte, como também aqueles segmentos extraordinários do neocórtex do pós-símio sapiens que reassumimos sob o nome de “consciência”. Pelo que, após a morte, não pode existir nenhuma vida pessoal, não pode existir algum “do lado de lá”. 

O relativismo dos valores é uma consequência lógica do ateísmo. Mas continuaria inevitável também sem o ateísmo. A inteira história humana é, de fato, diacrônica e sincronicamente um gigantesco afresco de valores relativos, incompatíveis uns com os outros, visto que, como já recordava Pascal (de fato nada ateu e mesmo catolicíssimo), “... (lei) universal não existe nenhuma. O furto, o incesto, o assassinato dos filhos e dos pais, tudo encontrou seu próprio lugar entre as ações virtuosas”. O relativismo dos valores é um fato, inelutável. Há muitos ateus (ou agnósticos) que procuram remover este fato com inexauríveis e falimentares tentativas de redescobrir uma inencontrável “moral natural”. São as várias formas de “cognitivismo ético” que, no entanto, não resistem à reflexão crítica.

Ninguém ainda conseguiu, de fato, demonstrar (no mesmo sentido da geometria, ou pelo menos da física e da biologia) que uma asserção moral seja verdadeira recorrendo somente a dados empíricos acertados e à lógica. Para fundar uma asserção moral é, ao invés, sempre inevitável recorrer a uma asserção moral precedente, num regresso ao infinito. O valor primeiro (ou último) que funda toda a cadeia é, portanto, indemonstrável. Para alguém será a dignidade igual entre todos os seres humanos, para outro o direito do mais forte a tornar escravo o mais débil. Entre estas duas morais (e muitas outras possíveis) a questão não é de verdade e falsidade, mas de luta (frequentemente mortal).

No cenário ocidental de relativismo de valores, qual é o espaço para a solidariedade e a tolerância?

A partir do que expliquei acima, o relativismo dos valores é, portanto, um fato. Mas não implica realmente o niilismo que consiste em considerar todos os valores como equivalentes. Quando se reconhece – o que é inevitável na ótica de um pensamento crítico – que o “cognitivismo ético” e toda pretensão de “moral natural” são ilusões metafísicas, disso não segue, de fato, a equivalência dos valores, mas o dever de escolher explicitamente os próprios valores, na consciência que o valor primeiro (ou último) constitui precisamente uma escolha, uma decisão, que não é fundável no plano da verdade. A moral do nazista não é “falsa”, é abjeta porque eu escolhi como fundamento ético da minha existência a igual dignidade entre todos os homens. Mas, sem esta escolha não estou em condições nem de refutar a opção nazista do ponto de vista argumentativo, nem de combatê-la do ponto de vista prático.


Ora, o Ocidente moderno nasce, com o Iluminismo, precisamente a partir desta escolha. O valor de fundo que permite o produzir-se da modernidade ocidental é a autonomia do ser humano (a partir da sinergia historicamente imprevisível e de todo contingente de ciência + heresia). Autós-nomos, dar-se, de si mesmo, a própria lei. O que implica que tal autonomia considere todos e cada um, pois, caso contrário, seria uma nova forma de heteronomia, de submissão da maioria a alguns privilegiados autocratas. Por isso, não tem nenhum sentido perguntar-se: “no cenário ocidental de relativismo dos valores, qual é o espaço para a solidariedade e a tolerância?”, a partir do momento em que o “cenário ocidental” nasce precisamente escolhendo tolerância e solidariedade como inevitáveis articulações do princípio de autós-nomos. Inevitáveis ambas – a tolerância e a solidariedade – sob o perfil lógico, também se historicamente serão conquistadas através de um processo histórico feito de lutas e sofrimentos ao longo de um par de séculos, da revolução americana até o wellfare dos anos 1960; e o princípio de tolerância se tornará então, desde o início, um pôr em jogo da modernidade, sendo que a solidariedade deverá esperar a irrupção no palco do movimento operário. 

Por essa razão, de vez em quando se reduz no Ocidente a solidariedade e a tolerância e são os próprios valores do Ocidente que acabam sendo traídos. Deste ponto de vista, podemos dizer que a história da modernidade é a história de um conflito de resultados alternativos entre os valores do autós-nomos (para todos e para cada um) e as resistências do privilégio e do obscurantismo, que aceitam a modernidade somente sob a vertente das vantagens tecnológicas garantidas pelo progresso científico. Mas, ao mesmo tempo, obstaculizam a modernidade e a combatem enquanto possibilidade de conduzir desencanto, laicismo e democracia às suas lógicas consequências libertário-igualitárias. Deste ponto de vista, a modernidade é também a história da luta entre a democracia levada a sério e o establishment que a quer redimensionar como instrumento de conservação. Mas, neste conflito, que em anos mais recentes está assinalando preocupantes vitórias para os impulsos mais reacionários, a Igreja Católica hierárquica tem andado com as oligarquias e contra a “tolerância e solidariedade” (e também é impróprio continuar repetindo que, do ponto de vista histórico e ideológico, o conceito de autonomia é “tributário” à igualdade cristã, pois são duas coisas muitíssimo diversas).

A partir do diagnóstico nietzschiano do niilismo e da morte de Deus, abriu-se espaço para uma compreensão do homem que descambou em relativismo de valores. Por outro lado, há um retorno a Deus como salvação para os totalitarismos e a nadificação ou nulificação dos sujeitos. Que impasses e avanços surgem desse panorama do ponto de vista existencial e de autonomia do ser humano?

A “revanche de Deus” não nasce como tentativa de salvação contra os totalitarismos e a aniquilação dos sujeitos. Esta é a tese de Wojtyla e Ratzinger, falsa no plano histórico e insustentável nos planos lógico e filosófico (Wojtyla e Ratzinger fazem remontar os totalitarismos ao iluminismo e à pretensão do autós-nomos!). O Deus da Igreja Católica até encontrou, com os totalitarismos fascistas, formas mais que confortáveis de convivência, e Mussolini foi até mesmo gratificado por Achille Ratti, mais conhecido como Papa Pio XI , com o título de “homem da Providência”. A onda atual de “revanche de Deus” (etiqueta que cobre fenômenos entre si muito diversos e não assimiláveis, desde os fundamentalismos – seja o islâmico ou o dos telepregadores protestantes, ou ainda o das católicas “Comunhão e libertação ” ou dos “Legionários de Cristo ” – aos sincretismos de religiosidade “new age” ou às seitas que na China renovam as religiões tradicionais) nasce, ao invés, como sub-rogação das esperanças de realização radical da democracia que caracteriza os dias da vitória contra o nazifascismo e, sucessivamente, os movimentos de luta anticolonialista no terceiro mundo, esperança que dos anos 1970 em diante se reduziu progressivamente.

Estas esperanças, que encontram uma última labareda em 1968, vêm sendo frustradas pelo triunfo do liberalismo selvagem de Reagan e Tatcher , pelo progressivo empobrecer-se das democracias ocidentais em “partido-cracias”, e pela metamorfose dos vitoriosos movimentos terceiro-mundistas em oligarquias de governo sempre mais corrompidas e sanguinárias. E a derrota do totalitarismo soviético em 1989 confirma este clima de esperanças frustradas: somente alguns países do Leste conseguem – fatigosamente, contraditoriamente, parcialmente – homologar-se às democracias ocidentais (já em crise com respeito aos valores fundantes de “tolerância e solidariedade”, como temos visto), enquanto a Rússia de Putin se torna modelo de “democracia negada” e a China consegue juntar totalitarismo político e desfrute econômico selvagem.

A democracia ocidental se baseia no conceito de autonomia e também é tributária ao cristianismo em função da premissa de igualdade. Como analisa o projeto político da modernidade? Ele está esgotado? Por quê?

Quando diminui a esperança terrena na luta política e social, é natural que retorne o seu sub-rogado celeste. O fenômeno da “revanche de Deus” diminuirá tão logo tornem maciças as lutas pela democracia radical, com perspectivas críveis de sucesso ao menos parcial. O projeto político da modernidade não se exauriu por isso, mas é mais que incompleto e, portanto, a ser retomado, porque a realização de “tolerância e solidariedade” se chama precisamente democracia radical.

Como podemos falar em moralidade, direitos humanos e verdade numa época tão relativista como a nossa?

Os direitos humanos são parte integrante desta luta que deve retornar. Mas para ser “humanos”, devem valer realmente para todos. A declaração de Independência americana, escrita por Thomas Jefferson , fala justamente de “direito à obtenção da felicidade”. Uma felicidade tornada impossível tanto pela falta de liberdade quanto pela desmedida das desigualdades econômicas e sociais. Em 1968 os estudantes de Varsóvia se rebelaram justamente contra o regime comunista, gritando “não há pão sem liberdade”, mas vale obviamente também o recíproco: “não há liberdade sem pão”. É necessário, no entanto, ter claro que os direitos humanos, que devem ser de “pão e liberdade” para todos e para cada um, não são de fato humanos no sentido de serem inscritos espontaneamente no coração do homo sapiens. A prevaricação, a prepotência, a violência, a “lei” do mais forte parecem mesmo ser com frequência a tendência mais natural. Os direitos humanos são, na realidade, direitos civis, escolhidos através de lutas democráticas dos séculos mais recentes. Estes direitos civis são filhos do relativismo porque jamais teriam podido nascer sem o princípio do autós-nomos, incompatível, como é óbvio, com qualquer “soberania de Deus”.

Que valores são comuns entre cristãos e ateus?

Dadas estas premissas que acabo de expor, existe um terreno comum de ação ente ateus e crentes? Certamente, depende do tipo de ateus e do tipo de crentes. Não existe, de fato, uma moral ateia. Existem tantas e um ateu pode ser uma flor de reacionário. E também não existe uma moral dos crentes, mas tantas quantas as interpretações das religiões. Consequentemente, o terreno comum não depende da fé, mas das escolhas ético-políticas de cada um, seja ele ateu ou crente. Por exemplo, entre ateus democráticos que combatem por “justiça e liberdade” e crentes que levem a sério o Evangelho quando se lança contra os ricos (praticamente em cada página) e quando solicita que “teu dizer sim seja sim e teu dizer não seja não, porque o restante vem do demônio”, há plena consonância.

Fonte: Paulopes

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