Quarta, 17 Dezembro 2014 12:25

A QUESTÃO DO SANGUE

abstinência de carne bovina caracteriza o hinduísmo; a abstinência de carne suína caracteriza o judaísmo; a abstinência de transfusões de sangue ou derivados caracteriza as Testemunhas de Jeová. Se há, por assim dizer, uma 'marca registrada', uma coisa pela qual as Testemunhas de Jeová sejam mundialmente conhecidas e, ao mesmo tempo, impopulares, esta é a sua exótica política contra o uso medicinal do sangue. Todavia, nem sempre foi assim. Na verdade, a maioria esmagadora das Testemunhas de Jeová em nossos dias não faz a mínima idéia de qual era a postura de sua 'mãe espiritual' (a Sociedade Torre de Vigia) até o início dos anos 40. A primeira menção sobre o tema foi feita ainda no século 19, porém com uma visão totalmente diferente daquela sustentada pelas testemunhas de Jeová nos últimos 60 anos. Trata-se do comentário feito pelo fundador da religião (C. T. Russell) na publicação Torre de Vigia de Sião de 15 de novembro de 1892, no qual, analisando a decisão do concílio apostólico de Atos, capítulo 15, ele diz:

     "[Tiago] sugeriu, mais adiante, escrever-lhes para simplesmente absterem-se das impurezas dos ídolos (versículo 29), das coisas estranguladas e do sangue (como se, por comerem tais coisas, eles estivessem se tornando pedras de tropeço para seus irmãos judeus, vide 1 Cor. 8:4-13) e da fornicação."

      Vemos aqui que o entendimento do 'pastor' Russell  era semelhante ao da quase totalidade dos teólogos no que se refere a esta passagem bíblica. Cerca de quinze anos depois, em 1909, ele confirmaria este mesmo entendimento. Na página 117 de A Sentinela de 15 de Abril daquele ano, Russell esclarecia que os cristãos não viam a decisão quanto à 'abster-se de coisas sacrificadas a ídolos e de sangue' como sendo "uma lei", nem isto fazia deles "cristãos", mas servia meramente como um meio de manter a harmonia com os judeus recém-convertidos ao cristianismo. Russell morreu pensando assim. Seus sucessores trataram de mudar este entendimento, com conseqüências dramáticas até a atualidade.

     A primeira interpretação desastrada do capítulo 15 de Atos e 6 de Gênesis surgiu em 1923, com um inflamado artigo na revista A Idade de Ouro, deflagrando a campanha contra a vacinação pública, a qual duraria cerca de 30 anos. Por essa época, aplicava-se o entendimento dos textos bíblicos como se referindo exclusivamente aos animais. Isto colocava a prática da vacinação na mira dos 'teólogos' da Sociedade Torre de Vigia, ao passo que passava por alto as transfusões de sangue humano. Na verdade, a organização elogiou a doação de sangue por duas vezes, uma em 1925 e outra em 1940. Veja o que diz estes artigos:

O Sr.B.W Tibble, de Londres, Inglaterra, em quarenta e cinco ocasiões diferentes doou um litro de sangue, para transfusão aos pacientes do Hospital de Londres. A taxa normal é de cinco guincas, 25 dólares, mas Tibble sempre se recusou a receber qualquer pagamento por seus serviços. Ele foi honrado com a Ordem do rei. (A Idade de Ouro, 29 de Julho de 1925, pág. 683).

     “...um dos médicos na emergência principal doou um quartode seu sangue para transfusão, e hoje a mulher vive e sorri alegremente...” (Consolação, 25 de Dezembro de 1940, pág. 19)                     

     Infelizmente, este entendimento do assunto duraria menos de cinco anos à frente, pois um artigo de A Sentinela de 1 de Julho de 1945, em inglês,  declararia:                                                                                                        “...[o uso do sangue] era para ser feito sobre o altar sagrado... e não por tomar tal sangue diretamente dentro do corpo humano... As transfusões de sangue [são] pagãs [e] desonram a Deus.”  

      Foi o começo de tudo. Após a malfadada campanha contra as vacinas, a Sociedade Torre de Vigia centrava agora seu ataque no uso medicinal do sangue. Todavia, da mesma forma que no episódio das vacinas, a doutrina não tardaria a esbarrar em sérios obstáculos científicos e  lógicos, produzindo uma das mais incríveis seqüências de  idas e vindas, com conceitos sendo constantemente reformulados. Um breve exame histórico do desenvolvimento desta doutrina vai nos permitir contemplar o seu naufrágio na areia movediça da inconsistência e da contradição. Vejamos:

    1925 - A edição de A Idade de Ouro de 29 de Julho, pág. 683, tece comentários elogiosos aos doadores habituais de sangue (conforme transcrição acima). Praticamente nenhuma Testemunha de Jeová hoje sabe disso.

     1940 - A edição de Consolação de 25 de Dezembro classifica (conforme transcrição acima) como 'heróico' o ato de um doador de sangue que salvara a vida de uma senhora. Outro fato ignorado pelas Testemunhas de Jeová da atualidade.

     1945 - A edição de A Sentinela de 1 de Julho condena (conforme transcrição acima) o uso medicinal de sangue e derivados. Ironicamente, a versão holandesa da revista Consolação, apenas dois meses mais tarde, diria:

      "Deus jamais emitiu decretos proibindo o uso de medicamentos, injeções ou transfusões de sangue. Tudo não passa de invenções de pessoas que, como os fariseus, desprezam o amor e a misericórdia de Deus." - Consolação de Setembro de 1945, pág. 29 (em holandês)

     Este desconcertante episódio serve para demonstrar quão súbita foi à mudança doutrinal. O responsável (ou responsáveis) pela revista na Holanda talvez não estivesse a par da repentina reviravolta e simplesmente manteve a política anterior. Provavelmente, houve uma falha de comunicação. Em todo caso, fica óbvio que ele próprio era incapaz, mediante a leitura da Bíblia, de chegar à mesma conclusão que a Sociedade chegara. A partir do relato, vê-se que ele teve um entendimento totalmente oposto.

     1954  - A edição de 8 de Agosto de Despertai!, pág. 24 (em inglês), condena - pela primeira vez - o uso de "frações" do sangue, tais como a gamaglobulina:

      “...a proteína sanguínea ou 'fração' conhecida como gamaglobulina para uma injeção...aqueles interessados no aspecto bíblico notarão que o fato de ser ela obtida do sangue integral  coloca-a na mesma categoria das transfusões de sangue”   

     1956 - A Sociedade Torre de Vigia confirma o banimento às "frações" sanguíneas, novamente em Despertai!, edição de 8 de Setembro, pág. 20 (em inglês):

      “Enquanto este médico defende o uso de certas 'frações' sanguíneas, particularmente albumina, tal uso está sob proibição bíblica."

     1958 - Subitamente, a organização volta atrás e afirma que o uso de 'frações' do sangue e as transfusões não estão na mesma categoria. A Sentinela de 15 de Setembro, pág. 575 (em inglês), diz:

      “Devemos considerar a injeção de soro... e frações do sangue como a gamaglobulina na corrente sanguínea... como o mesmo que ingerir sangue ou tomar transfusões de sangue ou plasma? Não, não parece necessário que os ponhamos na mesma categoria, embora o tenhamos feito algum tempo atrás.”   

     Assim, a Sociedade Torre de Vigia libera, pela primeira vez, o que havia proibido. Por outro lado, um comentário na seção "Perguntas dos Leitores" de A Sentinela de 1 de Agosto deste ano, pág. 478 (em inglês), considera uma eventual aceitação de transfusão como sinal de "imaturidade", não provendo base para disciplina severa por parte da congregação.

     1959 - A organização fecha gradualmente o cerco em direção a uma postura mais radical, condenando até a transfusão autóloga, ou seja, aquela em que a pessoa recebe parte de seu próprio sangue, recolhido antes da cirurgia:

      “Conseqüentemente, a remoção do sangue de alguém, armazenando-o e depois devolvendo-o à mesma pessoa constituiria uma violação dos princípios bíblicos...se o sangue for armazenado, mesmo por um breve período de tempo, isto seria uma violação das escrituras..." - A Sentinela 15/10/1959, pág. 640 (em inglês)

     1961 - Sai o famigerado artigo no qual a Sociedade Torre de Vigia define sangue transfundido como alimento. Para isso, recorre ao comentário do médico Jean Baptiste Denys:

       "Não faz diferença que o sangue seja introduzido no corpo através das veias em vez de através da boca. Também não tem peso a alegação de alguns, de que não é o mesmo que alimentação intravenosa. O fato é que isso nutre ou sustém a vida do corpo. Em harmonia com isto, está uma declaração no livro Hemorrhage and Transfusion [Hemorragia e Transfusão], de George W. Crile, A.M., M.D., que cita uma carta de Denys, médico francês e investigador pioneiro no campo das transfusões. Diz: 'Ao realizar uma transfusão, isso nada mais é do que nutrir através de um caminho mais curto do que o normal -- ou seja, colocar nas veias sangue já feito em vez de tomar alimento que só depois de várias mudanças se transforma em sangue.'" - A Sentinela 15/9/1961, pág. 558 (em inglês)

     O que o artigo acima deixa de mencionar é que a declaração evocada como apoio para a doutrina do sangue foi emitida, não na década de 60, mas no século dezessete, sendo, portanto totalmente obsoleta.

     Nesse mesmo ano, a edição de A Sentinela  de 1 de Dezembro, pág. 736 (em português), finalmente estabelece a punição para todo aquele que persistir em aceitar uma transfusão de sangue ou doar sangue:

      “...se, no futuro, ele persistir em aceitar transfusões de sangue ou em doar sangue...ele mostra que não se arrependeu realmente...e deve ser cortado [da congregação] por ser desassociado.”

     Fica claro, pois, que se trata de uma determinação organizacional. Ainda nesse ano, um artigo em A Sentinela (15/9) afirma que impulsos homicidas e suicidas são transmitidos pelo sangue. Também, neste ano, a Sociedade Torre de Vigia  muda novamente sua postura com relação às 'frações' de sangue, condenando-as pela segunda vez

      “É errado suster a vida mediante infusões de sangue, plasma, glóbulos vermelhos ou várias frações de sangue? Sim! ...Quer seja sangue integral quer fração do sangue, ... quer seja administrado por transfusão ou por injeção, a lei divina se aplica... [Deus] requer respeito pela santidade do sangue ” - A Sentinela 15/3/1962, pág. 174 (em português)

     1963 - A Sociedade Torre de Vigia continua a reiterar a proibição do uso medicinal do sangue, seja em transfusões seja em quaisquer derivados:

      “...Transfusões de sangue ... são uma prática antibíblica... não apenas sangue integral, mas qualquer coisa que se derive do sangue..." - A Sentinela 15/7/1963, pág. 443 (em português)

     1964 - A organização muda novamente e considera "questão de consciência" o uso de 'frações' sanguíneas (A Sentinela de 15/11, em inglês):

      “...Assim, deixamos para a consciência de cada indivíduo determinar se deve se submeter a uma inoculação com soro contendo frações de sangue com o propósito de produzir anticorpos para combater doenças..."

     Aqui, as 'frações' de sangue são liberadas pela segunda vez. Também, neste ano, um artigo de A Sentinela (15/11) autoriza médicos adeptos da religião a realizarem transfusões de sangue em pacientes não-adeptos.

     1965 - Durante este ano, a postura favorável ao uso das 'frações' de sangue é mantida:

      “...Já que [os soros] não envolvem o uso de sangue como alimento para nutrir o corpo, algo que a Bíblia condena diretamente, seu uso é matéria para a consciência de cada um." - Despertai! de 22/8/1965, pág. 18 (em inglês)

     1966 - Pouco antes da proibição dos transplantes de órgãos - classificados como 'canibalismo' - a Sociedade Torre de Vigia ensaia a primeira comparação com respeito ao sangue:

      “É alguém a quem repugna desobedecer a lei de Deus? Então, tomar sangue lhe é tão desprezível como o canibalismo." - A Sentinela de 1/1/1967, págs. 16,17 (em português)

     1967 - Os pais são incentivados pela organização a não permitirem que seus filhos pequenos recebam uma transfusão de sangue:

      “De modo correto, [os pais] tentam evitar que seus filhos recebam sangue de outrem em seus corpos." - A Sentinela de 1/12/1967, pág. 724 (em inglês)

     1972 - A Sociedade Torre de Vigia relembra a proibição das transfusões autólogas:

      “A Bíblia mostra que o sangue não deve ser retirado do corpo, armazenado e posteriormente reutilizado." - Despertai!  de 8/4/1972, págs. 29,30 (em inglês)

     1974 - A postura com respeito às 'frações' de sangue - tomada dez anos antes - é mantida:

      “Que dizer, então do uso dum soro que contenha apenas uma fração minúscula do sangue e que seja empregado para prover uma defesa auxiliar contra uma infecção, não sendo empregado para realizar a função sustentadora da vida, normalmente desempenhada pelo sangue? Cremos que isto deve ser decidido pela consciência de cada cristão." - A Sentinela de 15/10/1974, pág. 640 (em português)

     1975 - A Sociedade Torre de Vigia - por incrível que pareça - muda novamente sua postura concernente ao uso de 'frações' do sangue, desta vez com respeito ao tratamento de pacientes hemofílicos:

      “Certos fatores plasmáticos de coagulação acham-se agora em amplo uso... os que recebem tal tratamento enfrentam outro perigo mortífero... quase 40% dos 113 hemofílicos apresentaram casos de hepatite... todos receberam sangue integral, plasma ou derivados sanguíneos que continham os fatores. Naturalmente, os cristãos não utilizam este tratamento potencialmente perigoso, acatando a ordem bíblica de 'abster-se de sangue'." - Despertai! de 22/10/1975, pág. 29 (em português)

     Do artigo acima se subentende que o uso de 'frações' (derivados) de sangue foi proibido - pela terceira vez! Esta política duraria - pelo menos oficialmente - cerca de 3 anos e não há meios de saber quantas vidas se perderam neste período por conta deste entendimento. No início dos anos 70 recomendava-se às Testemunhas de Jeová que aceitassem o uso de 'frações' de sangue apenas uma única vez. 

     Todavia, ainda no ano de 1975, por volta do mês de junho, a organização instruía aqueles que buscavam contato telefônico a tomarem pessoalmente a decisão de aceitar ou não o uso de fatores de coagulação. Há razões para crer que tal postura não foi publicada neste mesmo ano porque representaria uma mudança muito brusca, suscitando contestações e - quem sabe - ações judiciais. Àqueles que enviaram correspondência, a nova postura extra-oficial foi transmitida. Infelizmente, não havia como contatar de volta aqueles que apenas telefonaram. Pode-se apenas conjeturar sobre o que  teria acontecido a estes pacientes até o ano de 1978, quando, finalmente, a mudança doutrinal foi anunciada.

     1977 - A Sociedade reconhece que a transfusão de sangue não passa de um transplante de órgão -  proibido desde 1967:

      “...uma pessoa poderia rejeitar sangue simplesmente porque se trata essencialmente de um transplante de órgão, o qual, na melhor das hipóteses, é apenas parcialmente compatível com seu próprio sangue." - As Testemunhas de Jeová e a Questão do Sangue, pág. 41 (em inglês)

     Três anos mais tarde, os transplantes seriam liberados. A analogia, porém, foi esquecida, as transfusões continuavam proibidas.

     1978 - O Corpo Governante das Testemunhas de Jeová reverte totalmente seu entendimento de três anos atrás. Repare o leitor o que diz este artigo:

      “...Que dizer se aceitarem injeções de soro para combater doenças tais como... difteria, tétano, hepatite por vírus, hidrofobia, hemofilia e incompatibilidade de RH? Isto parece cair numa zona de questões limítrofes... alguns cristãos acham que aceitar uma pequena quantidade de derivado de sangue para tal fim não é... desrespeito pela lei de Deus... adotamos atitude de que esta questão precisa ser resolvida por cada pessoa, por decisão pessoal." - A Sentinela de 15/10/1974, pág. 640 (em português)

     Não se pode concluir outra coisa, a não ser que o uso de 'frações' de sangue foi liberado - pela terceira vez! Vemos também que a Sociedade Torre de Vigia introduz um novo conceito de ' zona limítrofe', uma área de indefinição sobre o que é certo ou errado.

     1980 - A Sociedade Torre de Vigia cria as Comissões de Ligação aos Hospitais (COLIH). O objetivo de tais comissões é fazer contato com médicos que aceitem fazer cirurgias sem sangue ou derivados e 'assessorar' as Testemunhas em sua postura contrária ao tratamento tradicional, assegurando que este não seja administrado a  um paciente inconsciente, mesmo em risco de morte.

     1982 - O Corpo Governante introduz, embora de maneira não explícita, a teoria dos componentes "maiores" e "menores" do sangue:

      “Embora estes versículos não estejam expressos em termos médicos, as Testemunhas de Jeová consideram que proíbem a administração de transfusões de sangue total, de GV's e de plasma, bem como de GB's e de plaquetas sob forma concentrada. Entretanto, o entendimento religioso das Testemunhas não proíbe de modo absoluto o uso de componentes como albumina, as imunoglobulinas e os preparados anti-hemofílicos; cabe a cada pessoa decidir individualmente se deve aceitar esses." - Despertai! de 22/12/1982, pág. 22 (em português)

     1983 - A condenação à transfusão autóloga permanece, mas a circulação sanguínea extracorpórea é autorizada:

      “...o sangue é sagrado... quando retirado do corpo de uma criatura, deve ser devolvido a Deus por derramá-lo no seu escabelo, a terra... Portanto, como poderia ser correto armazenar seu sangue (mesmo que apenas por um período relativamente curto) e depois repô-lo no seu corpo? [E se] seu sangue [fosse] canalizado através de um equipamento fora do seu corpo e então reposto imediatamente? Alguns acharam que podem permitir isso com a consciência limpa desde que o equipamento  seja aprontado com líquido que não é sangue. Consideraram a aparelhagem externa como extensão de seu sistema circulatório..." - Unidos na Adoração do Único Deus Verdadeiro (1983), pág. 157 (em português)

     1984 - O transplante de medula óssea é assunto de decisão pessoal. Entretanto, o fato de a medula transplantada poder conter certa medida de sangue pode desencorajar a Testemunha de Jeová a recebê-la, mesmo diante do risco envolvido em tal decisão, a saber, a  morte iminente. É o que diz A Sentinela de 15 de Novembro, págs. 31 e 32. Também neste ano, o Corpo Governante recua de seu equívoco científico de 1971, não mais afirmando que o coração exerce qualquer papel referente às emoções e à cognição.

     1985 - A Sentinela 15 de Agosto págs. 22 e 23, num artigo sobre a contaminação de milhares de receptores de sangue ou derivados com o vírus da AIDS evoca este fato em apoio de sua doutrina. Entretanto, isso seria o mesmo que promover a doutrina judaica de não comer carne de porco ou a doutrina hindu de não comer carne de gado bovino sob a alegação de que tais medidas evitariam doenças como a teníase ("solitária"). É interessante lembrar que as razões apontadas pela liderança das Testemunhas de Jeová para a rejeição do uso medicinal do sangue são de natureza teológica, não médica. O uso de certos fármacos (penicilina e anestésicos, por exemplo) também envolve riscos à saúde (choque anafilático é um deles) e nem por isso as Testemunhas de Jeová fazem objeção bíblica ao seu uso.

     1988 - A revista Despertai! de 8 de Outubro, pág. 11, relatou que cerca de 12 mil americanos hemofílicos haviam sido contaminados com AIDS, sugerindo que a doutrina das Testemunhas de Jeová punha seus adeptos a salvo de tal risco. Entretanto, o artigo omitiu o fato de que, em muitos casos, a via de contaminação foi, não a transfusão de sangue integral, mas a administração de fatores de coagulação, agora permitidos pela religião. Em outras palavras, a doutrina não estava provendo proteção alguma aos hemofílicos. Matérias como essa acabam por desviar convenientemente a atenção do leitor do fundo religioso da doutrina. A Sociedade Torre de Vigia faz clara seleção de evidência, omitindo os casos em que o tratamento salvou ou prolongou vidas e concentrando-se naqueles em que houve complicações. Essa estratégia tem um objetivo, incutir na mente da Testemunha de Jeová a idéia de que os fracassos e riscos da terapia constituem evidência adicional de que a doutrina de sua organização é divinamente inspirada.

     1989 - Mais uma vez a organização condena as transfusões autólogas. No entanto, autoriza a hemodiluição:

      “...esse uso de sangue autólogo. As Testemunhas de Jeová, porém, não aceitam este procedimento. Há muito entendemos que tal sangue estocado não é mais parte da pessoa. Foi totalmente removido dela, assim, esse sangue deve ser descartado em harmonia com a lei de Deus... Em um processo diferente, sangue autólogo pode ser desviado de um paciente para um dispositivo de hemodiálise (rim artificial) ou máquina cárdio-pulmonar. O sangue flui através de um tubo para o órgão artificial... e retorna ao sistema circulatório... Alguns cristãos têm permitido isso desde que a máquina não seja preparada com sangue... Um cristão, tendo que decidir quanto a se permite que seu seja desviado por algum dispositivo externo, deve ponderar, não primariamente sobre se uma breve interrupção do fluxo poderia ocorrer, mas se ele conscienciosamente consideraria o sangue desviado como parte de seu sistema circulatório... E quanto à hemodiluição?... alguns cristãos têm aceito, outros têm recusado. Novamente, cada indivíduo deve decidir..." - A Sentinela de 1/3/1989, págs. 30,31 (em português)

     Neste mesmo ano,  pareceu haver uma notável falta de comunicação dentro dos prédios da organização, pois o autor da brochura Como Pode o Sangue Salvar sua Vida?, pág. 27 (em inglês), escreveu:

      “Técnicas para coleta intraoperativa ou hemodiluição que envolve armazenamento de sangue são objetáveis para eles."

     Das duas uma,  o autor do artigo não estava a par da postura da organização ou a Sociedade Torre de Vigia havia mudado de opinião mais uma vez. As duas opções são ruins. A primeira revelaria falta de harmonia e responsabilidade para com o bem-estar dos milhões de leitores e a segunda, falta de senso quanto ao que é certo ou errado. O que torna mais contraditório o argumento desta brochura é o fato de a própria organização reconhecer - em A Sentinela de 15/6/1985 - que, para obter os fatores de coagulação para o tratamento de um único paciente hemofílico, é necessária a contribuição de mais de 2500 doadores, cujo sangue é "estocado" e processado. No entanto, tal tratamento foi liberado aos adeptos hemofílicos desde 1974, enquanto que a mesmíssima estocagem para transfusão autóloga (ou hemodiluição) era condenada. Por que  aceitar a estocagem de milhares de doadores não-adeptos, ao passo que os beneficiados não podem retribuir o gesto? Por que o uso do sangue de uns é tolerado e o de outros, condenado?

     1990 - A Sociedade Torre de Vigia dá agora uma roupagem mais 'científica' à sua doutrina dos componentes "maiores" e "menores" do sangue:

      “Os Componentes Principais do Sangue...   Plasma: cerca de 55% do sangue. 92% dele é água; o resto é composto de proteínas complexas, tais como globulinas, fibrinogênio e albumina. Plaquetas: aproximadamente 0,17% do sangue. Glóbulos brancos: cerca de 0,1%. Glóbulos vermelhos: cerca de 45%." - Despertai! de 22/10/1990, pág. 4 (em inglês)

     Até hoje, não se sabe exatamente qual é a importância de tal 'tecnicismo' no tocante à doutrina cristã. Tampouco se sabe em que parte das Escrituras o Corpo Governante apoiou-se para legislar tão minuciosamente sobre o que pode ou não ser considerado "maior" ou "menor", "principal" ou "secundário"  no tecido sanguíneo. Caso uma Testemunha de Jeová seja indagada sobre estas questões, dificilmente saberá como embasá-las biblicamente. Ainda em 1990, um artigo publicado em A Sentinela de 1 de Junho, na seção "Perguntas dos Leitores", autoriza o uso de 'diminutas' frações do plasma de um doador, tais como anticorpos, fator RH, fatores de coagulação para hemofílicos e albumina. Note o leitor que todos estes são parte de um componente anteriormente definido como "principal" (plasma) e, portanto, proibido. Exatamente onde a Bíblia proíbe o uso do todo, mas admite o uso de uma 'fração' do todo? É admissível a um cristão o usufruto de uma 'fração diminuta' do pecado?  Também, no artigo acima mencionado, salienta-se que a "transferência natural de algumas frações protéicas do plasma para o sistema sanguíneo de outrem [no caso, da mãe para o feto] pode ser outro fator a ser considerado quando o cristão tem de decidir se aceitará imunoglobulina, albumina ou injeções similares de frações do plasma". Mais uma vez a organização esbarrou na ciência, pois por volta desta mesma época, constatou-se que os componentes "maiores" - proibidos pela religião - também são passados, em pequenas quantidades, tanto da  mãe para o feto quanto no sentido contrário. Estaria Deus violando seu próprio decreto?

     1991 - Os pais são novamente exortados a incutir repetidamente na mente dos filhos, mesmo muito pequenos, a resolução contrária ao uso de transfusões de sangue. Os jovens devem ser treinados quanto ao que dizer na presença de um juiz:

      “Se você tem crianças, está certo de que elas aceitam e podem explicar a postura bíblica sobre transfusões?...Pais conscientes revisarão estas matérias com seus filhos, quer sejam muito jovens quer quase adultos. Os pais podem promover sessões práticas na qual cada jovem encara questões que poderiam ser colocadas por um juiz ou um diretor de hospital” - A Sentinela de 15/6/1991, pág. 18 (em inglês)

     1992 - Um artigo em A Sentinela de 15 de Outubro afirma que não há necessidade de preocupações com "minúcias" sobre a forma do abate de um animal para consumo, tais como o tempo decorrido entre a morte e a sangria, se todo o sangue fora drenado, qual o vaso sanguíneo cortado, se resta muito sangue ainda na carcaça e coisas assim. Um grande contraste se considerarmos todas as 'minúcias' com que o Corpo Governante tem legislado sobre o uso de 'frações' deste ou daquele tipo, o uso único de fatores de coagulação,  o sangue ter sido ou não estocado momentaneamente fora do corpo, se o fluxo sanguíneo foi ou não interrompido e outras coisas do gênero.

     1994  -  Sai o famoso exemplar de Despertai! repleto de fotos de jovens que morreram recusando o tratamento medicinal com sangue ou derivados "maiores". Se por um lado, o artigo aparentemente buscava fazer uma propaganda favorável à postura das Testemunhas de Jeová, por outro lado, talvez tenha sido o maior equívoco editorial já lançado pelas gráficas de Brooklyn. A matéria repercutiu mal perante o público em geral e até entre algumas Testemunhas de Jeová. O artigo diz:

      “Em tempos passados, milhares de jovens morreram por colocarem Deus em primeiro lugar. Eles ainda o estão fazendo, só que hoje o drama se desenrola em hospitais e tribunais, com as transfusões de sangue sob discussão."

     Vemos aqui , pela primeira vez, a Sociedade Torre de Vigia admitindo que literalmente milhares de pacientes jovens estavam  morrendo como resultado de sua postura relativa à doutrina  do sangue. O artigo em momento algum reconhece que as transfusões de sangue poderiam ter salvado a vida de grande parte destes jovens, que morreram de forma estúpida e desnecessária.  

 

Despertai!  22/05/1994 - O "tiro saiu pela culatra"...

    

     1995 - Um artigo em A Sentinela de 1 de Agosto menciona algumas Testemunhas de Jeová como não objetando a uma técnica chamada reinfusão sanguínea e, sobre esta questão, o artigo reporta-se à matéria publicada na edição de 1 de Março de 1989.

     1996 - Em junho deste ano, três representantes da Sociedade Torre de Vigia compareceram a um fórum de bioética em uma universidade espanhola. Os profissionais médicos e os advogados presentes perguntaram: "Se um paciente Testemunha de Jeová vacilasse e aceitasse uma transfusão, seria rejeitado pela sua comunidade?"

     A resposta se encontra em A Sentinela de 15 de Fevereiro de 1997, pág. 20:

      “Isto iria depender da situação, porque a desobediência à lei de Deus, com certeza,  é um assunto sério a ser examinado pelos anciãos da congregação."

     A resposta acima apenas confirma aquilo que já se sabia, apesar de oficialmente negado pela instituição, a saber, a doutrina do sangue é uma postura organizacional e não simplesmente um entendimento pessoal. Do contrário, a resposta, logicamente, teria de ser: "não, a pessoa não será rejeitada por seus irmãos em hipótese alguma".

     1997 -  O JAMA [Jornal da Associação Americana de Medicina] - edição de 5 de Fevereiro, Vol. 277, No. 5, p. 425 - menciona a "morte desnecessária de milhares de pessoas" em razão da doutrina das Testemunhas de Jeová. É de longa data o empenho dos profissionais médicos desta entidade no sentido de expor as crendices e charlatanismos endossados pela Sociedade Torre de Vigia neste século.

     Os últimos anos têm assistido a um gradual abrandamento no tom dos artigos publicados pelas Testemunhas de Jeová - especialmente no tocante a questões delicadas como a  doutrina do sangue. Além disso, perante  organismos internacionais, os dirigentes da organização têm se mostrado  cada vez mais reticentes e ambíguos ao abordarem sua política organizacional neste e noutros  pontos polêmicos. Tem-se buscado aprimorar a imagem da entidade perante o público e isto exigirá, talvez, revisões doutrinais em um futuro próximo. Há razões para crer que tais mudanças já começaram a acontecer.

     A tendência é que com o tempo mais e mais frações passem a ser permitidas, até que fique insustentável esta absurda separação entre frações primarias e frações secundarias. Depois que todas as frações do sangue forem permitidas abre-se o caminho para que com  o tempo o próprio sangue também passe a ser permitido. Obviamente todo este processo deve ocorrer de maneira lenta e gradual para não assustar e chocar o grande numero de testemunhas que durante as ultimas décadas perderam parentes e amigos devido a esta absurda interpretação bíblica. Imagine quantos processos a Sociedade Torre de Vigia não enfrentaria se abruptamente mudasse sua doutrina do sangue.   

 

 As Testemunhas de Jeová Realmente Abstêm-se de Sangue?

 

     “As Testemunhas de Jeová prezam a vida e a consideram uma dádiva de Deus. Em harmonia com Atos 15:29, elas se abstêm de sangue.” –  Anuário das Testemunhas de Jeová, 2002, pág. 111

     A declaração acima, apesar de paradoxal, representa o conceito comum que as pessoas têm sobre as Testemunhas de Jeová. Não há dúvida que há na Bíblia uma lei sobre a abstenção de sangue, mas o que dizer dos critérios que a Sociedade Torre de Vigia dos EUA – entidade dirigente das Testemunhas de Jeová  – adota sobre essa lei?

 

 

Componentes do sangue que são permitidos

 

A Torre de Vigia não costuma usar termos tais como “proibimos isso ou aquilo”. Ela diz que essa ou aquela decisão depende da consciência do cristão. Mas isso é uma falsa colocação, pois se ela proibir alguma coisa, não importa se sua consciência permita ou não tal coisa (nem que a Sociedade acabe adquirindo a mesma opinião que você já tem! Há casos assim). Ou seja, quem manda mesmo é a Torre, e não a consciência de seus adeptos. Portanto, quando se usam, neste texto, expressões tais como “a Sociedade proibia”, ou “A Torre de Vigia não permite”, elas estão em perfeito acordo com a realidade.

    

     Como talvez saiba, ao contrário de antigamente, hoje a Torre de Vigia permite que seus adeptos aceitem certas frações derivadas de sangue. Essas frações são obtidas através de um processo chamado fracionamento. Alguns derivados do plasma são:

· Concentrado de Fator VIII
· Concentrado de Fator IX
· Complexo de Anti-Inibição de Coagulação (AICC)
· Albumina
· Imunoglobulinas
· Concentrado de Anti-Trombina III
· Concentrado de Inibição Alfa 1-Proteinase

     Às vezes argumenta-se que os componentes do sangue permitidos pela Sociedade Torre de Vigia dos EUA são frações do sangue muito pequenas, e por isso podem ser usadas. Mas tome como exemplo a albumina, que é um componente do sangue permitido pela Sociedade. Sabe a porcentagem que ela ocupa no sangue? Cerca de 2,2%. Esta porcentagem é muito maior do que a porcentagem dos componentes que a Sociedade proíbe, como os glóbulos brancos (1%) e as plaquetas (0,17%). Qual é a lógica que permite 2,2%, mas proíbe 0,17%? Então, fica claro que o que determina esse critério de proibição não é o fato de uma substância sangüínea ser ou não ser bem pequena.

A Sociedade ensina que os componentes do sangue permitidos estão apenas limitados àqueles que passam através da barreira da placenta durante a gravidez e que, baseando-se nisto, uma Testemunha pode aceitá-los de consciência tranqüila. Raciocina-se que se Jeová permite que estes componentes sangüíneos passem da mãe para o feto, é sinal de que Ele não está violando a sua própria lei. Isso até que tem lógica, mas o problema é que a ciência médica descobriu que praticamente todos os componentes do sangue passam através da barreira da placenta. Existem também vacinas e remédios que são feitos à base de sangue, que a Sociedade também permite. Sabe como se obtém os remédios à base de sangue permitidos? Observe:

     · Albumina: para se obter 600 gramas de albumina é preciso uns 45 litros de sangue que não foi ‘derramado no solo’, conforme a orientação bíblica, mas sim armazenado (a albumina é usada para tratar queimaduras graves).

    · Imunoglobulina: é dessa substância que se faz à vacina contra a cólera e muitas Testemunhas de Jeová já foram vacinadas com ela. Para se fabricar uma única injeção é preciso 3 litros de sangue. Este sangue, mais uma vez, é doado, armazenado e processado para produzir os produtos sangüíneos aprovados pela Sociedade Torre de Vigia dos EUA.

    · Crioprecipitado Anti-Hemofílico AHF: é a porção do plasma que é rica em certos fatores coagulantes, incluindo Fator VIII, fibrinogênio, Fator von Willebrand e Fator XIII. O AHF é removido do plasma através de congelação e depois descongelação lenta do plasma. (É usado para prevenir ou controlar hemorragias em indivíduos com hemofilia tipo A, doença de von Willebrand, e anomalias hereditárias na coagulação).

     · Preparados hemofílicos (Fator VIII e IX): o tratamento eficaz para um hemofílico requer uma substância chamada Fator VIII, que ajuda na coagulação e é feita a partir do sangue retirado de muitos indivíduos. São necessários cerca de 9000 Kg de sangue total para produzir uma única dose de 0,1 grama de Fator VIII. Uma pessoa que sofra de hemofilia grave necessita normalmente de várias doses por ano.

     Além dos itens descritos acima, há outros remédios derivados do sangue que são permitidos pela Torre de Vigia como a imunoglobulina da hepatite B [HBIG] (usada para tratar e prevenir a hepatite B), imunoglobulina do tétano (injeção contra o tétano), imunoglobulina da Raiva [RIG] (usada para tratar e prevenir raiva), imunoglobulina RhO [RhoGam] (administrada a mães Rh negativo para prevenir doença hemolítica do recém nascido), anti-trombina III (usada para tratar deficiência na anti-trombina III), e imunoglobulina humana [HIG] (usada para tratar e prevenir, dentre outras coisas, a hepatite tipo A). Aliás, a tendência em anos recentes tem sido permitir mais e mais produtos sanguíneos.

     É lógico pensar que aceitar essas substâncias significa aceitar parcialmente o sangue. Talvez seja por isso que o órgão dirigente das Testemunhas de Jeová vez por outra use a expressão “o mau uso do sangue” (A Sentinela, 15/06/91, p. 15, § 9). Ora, se o sangue for derramado no solo, ele não terá nenhuma utilidade; não se fará nenhum uso dele. Então, quer dizer que o sangue pode ter outra finalidade, além de ser ‘derramado no solo’? Pelo visto, fabricar remédios a partir do sangue é um ‘bom uso dele’, contrariando a opinião oficial da Torre de Vigia de que todo sangue que sai do corpo deve ser ‘derramado no solo’, conforme a Lei mosaica.

     Diante deste quadro, não parece ser possível explicar porque a Sociedade Torre de Vigia permite que uma Testemunha aceite estes componentes, enquanto é uma violação da lei de Deus aceitar outros, como plasma, plaquetas, glóbulos vermelhos e glóbulos brancos.

 

Relato de um suposto tratamento sem sangue

    

     Uma evidência de que a Torre aprova o uso parcial do sangue, se encontra na Despertai! de 22 de outubro de 1992, p. 12, no artigo “Tratamento sem sangue salvou-me da morte iminente”, onde relata o caso de um membro da sede mundial das Testemunhas de Jeová. Ele conta que um médico da Filial da Torre de Vigia lhe administrou eritropoietina (EPO) que, segundo o narrador, é “um hormônio sintético que estimula a medula óssea a produzir glóbulos vermelhos em ritmo acelerado” (p. 13, § 1). Sabe como se obtém a EPO? A descrição “hormônio sintético” deixa a impressão de que não se trata de algo relacionado com o sangue, talvez por isso muitas Testemunhas de Jeová a utilizem. No entanto, note o que a própria Torre de Vigia diz sobre a EPO:

     “Atualmente, usa-se também uma pequena quantidade de albumina em injeções do hormônio sintético EPO (eritropoetina).” – A Sentinela, 1º de outubro de 1994. p. 31.

     O estimulante de glóbulos vermelhos EPO mencionado pela Torre de Vigia é feito com uso da proteína sangüínea conhecida como albumina, que é sintetizada a partir de sangue que não foi ‘derramado no solo’, e sim coletado, armazenado e processado. Portanto, o título correto da Despertai! citada acima deveria ser: “Tratamento quase sem sangue salvou-me da morte iminente”. Quando a EPO começou a ser utilizada, todos os laboratórios que fabricavam a eritropoietina sintética usavam albumina na sua composição. Hoje em dia, porém, certo laboratório afirma que está produzindo EPO sem o uso de albumina (atualmente é o mais utilizado por Testemunhas de Jeová aqui no Brasil). É digno de nota que a imprensa internacional divulgou recentemente que a EPO desse laboratório está causando certos problemas imunológicos em alguns pacientes, versão que foi rechaçada tanto pelo laboratório como por alguns profissionais de saúde. Não há informação se o suposto problema tem haver com a ausência de albumina. Portanto, não se pode afirmar aqui que as duas coisas tenham relação entre si, nem que o problema realmente existe. De qualquer maneira o ponto importante a salientar é que a Torre aprova o uso da EPO, mesmo ela sendo feita com albumina.

Da mesma forma que alguns medicamentos hoje disponíveis de fatores VIII e IX (preparados hemofílicos), a EPO é produzida através de técnicas de engenharia genética. Na primeira menção que a Sociedade fez da EPO ela não deixou claro a sua forma de obtenção, apenas disse: “Recentemente foi aprovada, para uso limitado, uma promissora droga medicamentosa chamada eritropoietina recombinante. Ela acelera a produção de hemácias pelo próprio corpo, ajudando efetivamente a pessoa a produzir mais do seu próprio sangue.” (Despertai!, 22/10/1990, p. 13 - Brochura Como Pode o Sangue Salvar sua Vida, p. 15).

O termo recombinante se origina da idéia de recombinar geneticamente o DNA de certas substâncias gerando proteínas que permitam alcançar os mesmos efeitos que suas correspondentes naturais. Em outras palavras, é reproduzir artificialmente o que natureza produz. No que se refere à albumina sintética (EPO), a albumina humana é utilizada para estabilizar o preparado. O motivo de haver grande interesse em se fabricar proteínas sintéticas é que as correspondentes naturais não podem ser produzidas em grande quantidade, pois elas representam uma pequena fração do sangue total. Em virtude dessas técnicas de engenharia genética, muitos sonham que um dia poderá haver um sangue totalmente artificial.

Ainda sobre os preparados hemofílicos, a Associação da Torre de Vigia (denominação brasileira) sabe muito bem que para obtê-los é preciso muito sangue, e mesmo assim os aprova:

     “Cada lote de Fator VIII é fabricado do plasma coletado de até 2.500 doadores de sangue.” (A Sentinela, 1.º de outubro de 1985, p. 23. Veja também a Despertai!, 8 de outubro de 1988, p. 11).

     Muitas pessoas esclarecidas que não são Testemunhas de Jeová, mas que conhecem o ensino das Testemunhas, têm chamado a atenção da Torre de Vigia sobre a posição embaraçosa dela de permitir o uso separado de todos os componentes que foram aqui citados, mas proibi-los juntos. Se pegarmos todos esses componentes, juntá-los e adicionarmos água, o resultado será o plasma, que é proibido pela Torre. É como disse certo comentarista, especializado no ensino das Testemunhas de Jeová: “Faria sentido proibir alguém de comer um sanduíche, mas permitir que ele o abra e coma todas as partes separadamente?” (carne, alface, maionese etc.). Em qual base se determina esses critérios de proibição? Certamente, não é na Bíblia, pois ela não aborda tais assuntos.

 

 

O aleitamento materno e os leucócitos

     Como já foi dito, a Torre de Vigia simplesmente se baseia num conceito já ultrapassado de que só alguns componentes do sangue passam pela barreira da placenta e chegam até o bebê que está na barriga de uma gestante. Porém, está comprovado que quase todos os componentes do sangue da mãe passam pela placenta e chegam até o bebê. Entretanto, mais contundente do que a barreira da placenta, é o mecanismo de aleitamento materno.

Pouco depois do nascimento de uma criança, aproximadamente no segundo dia depois do parto, uma substância chamada colostro, um soro branco, é produzido pela mãe e transmitido ao bebê através da amamentação. Segundo os especialistas “a secreção do colostro continua durante cerca de uma semana, com uma conversão gradual para leite maduro”. Dentro do colostro e no leite humano há anticorpos, imunoglobulinas e outros elementos que são transmitidos à criança para que ela desenvolva resistência à doenças, tais como componentes de complemento, macrófagos, linfócitos, lactoferrina, lactoperoxidase, dentre outros. Macrófagos, também chamados de monócitos, são células do sistema reticuloendotelial que se movem no corpo e ingerem, por fagocitose, microorganismos, células mortas e outros resíduos. Os monócitos são os mesmos glóbulos brancos encontrados no sangue, também chamados de leucócitos. Existem outros tipos de glóbulos brancos como os eosinófilos, linfósitos, neutrófilos e basófilos. Resumindo, dentro do leite humano há substâncias sangüíneas, substâncias estas terminantemente proibidas pela Torre de Vigia! – Conceitos de Biologia, de Amabis e Martho, Ed. Moderna, Vol. 2, pp. 287, 292; Pelos caminhos do Sangue, de Rogério Nigro, Ed. Atual, p. 34.

O leite materno contém mais leucócitos do que se pode encontrar em uma quantidade equivalente de sangue. O sangue contém cerca de 4.000 a 11.000 leucócitos por milímetro cúbico, enquanto o leite de uma mãe pode conter, durante os primeiros meses de aleitamento, até 50.000 leucócitos por milímetro cúbico. Isto é de cinco a doze vezes mais do que a quantidade presente no sangue! Lembre-se que a Torre não aprova o uso de leucócitos. No aleitamento não está envolvida uma transfusão de sangue. A criança é alimentada por via oral com leite que contém substâncias sangüíneas. Ao se recorrer ao tipo de analogia que a própria Torre de Vigia faz, nota-se que Deus não está infringindo a sua própria lei por ter feito o homem um mamífero, que suga para dentro do estômago, nos primeiros meses de vida, alguns elementos do sangue materno junto com o leite, tais como os leucócitos. Portanto, se comer leucócitos não é pecado, por que transfundi-lo seria?

Consegue perceber que um padrão de entendimento está começando a surgir? Por que Jeová criou o corpo humano de uma forma que aparentemente faz com que sua lei não seja respeitada? Ou seria porque a Torre de Vigia não está entendendo essa lei corretamente? Segundo ela, uma transfusão é o mesmo que comer sangue, e é essa equivalência que gerou a proibição:

 “Abster-se do sangue na nutrição do corpo é tão necessário como abster-se da fornicação e da idolatria.”- A Sentinela, 15/03/86, p. 18.

     “Toda vez que se menciona a proibição de sangue nas escrituras é com relação a tomá-lo como alimento, e assim, é como nutriente que nos interessa a sua proibição.”– A Sentinela, 1/02/59, pp. 95 e 96 (Vide CD-ROM Biblioteca da Torre de Vigia, em inglês).

     Por volta de 1960, a Torre de Vigia aprendeu que o sangue transfundido não é digerido, mas é retido no corpo de forma muito semelhante a um órgão transplantado. (Comer sangue envolve o sistema digestivo, e recebê-lo por transfusão envolve o sistema cardiovascular). Mesmo com esse entendimento, a proibição das transfusões foi mantida, mas foram sendo permitidos cada vez mais produtos sangüíneos, se tomados separadamente. Se receber sangue é um pecado semelhante à fornicação, como é que a Torre admite a pessoa receber apenas uma parte desse sangue? Já ouviu falar que só um pouco de fornicação é aceitável? Não existe meio termo, ou algo é pecado ou não é. Admitir o uso parcial do sangue entra em conflito com a suposta posição adotada de “se abster de sangue”.

     Descrevendo de forma simplificada, para conseguir obter nutrição a partir do sangue, seria necessário comê-lo e digeri-lo, para poder decompô-lo e usá-lo como alimento. Não há benefício nutritivo de uma transfusão de sangue. A Torre de Vigia tem tentado contornar este fato argumentando que receber uma transfusão não é diferente de ser alimentado intravenosamente com dextrose ou álcool. Tais comparações são questionáveis e tratam o assunto de forma superficial, pois se analisarmos profundamente, o açúcar e o álcool podem realmente ser usados pelo corpo como alimento, sem digestão. O sangue transfundido não pode ser usado pelo corpo como alimento, da mesma forma que um coração transplantado não pode ser usado como alimento.

     O sangue na realidade é um órgão, só que em forma liquida. Portanto a uma grande diferença de se comer o sangue (aonde ele vai ser digerido pelo sistema digestivo e realmente nutrir o corpo) e de se fazer uma transfusão de sangue (aonde o sangue vai para o sistema circulatório e passa a fazer parte do corpo, seus glóbulos vermelhos vão levar oxigênio a todas as partes do corpo, seus glóbulos brancos passam a defender o corpo de vírus e bactérias nocivas, etc,etc...). A transfusão de sangue e semelhante a um transplante de rins por exemplo, a uma diferença muito grande de se pegar um rim, cortá-lo em bifes passar numa chapa e comê-lo, de você pegar o órgão e transplantá-lo para seu corpo (neste caso ele vai fazer parte do seu corpo, vai trabalhar filtrando o seu sangue, ele não vai ser digerido pelo seu corpo).

     Considere dois pacientes que estão incapacitados de comer, e dão entrada num hospital. Se durante vários dias, a um deles for aplicadas transfusões de sangue e ao outro for dada alimentação pela veia, qual deles estará se alimentando e sobreviverá? Logicamente, o que receber a transfusão de sangue não viverá; morrerá de fome! É por isso que os médicos não aplicam transfusões de sangue para tratar a desnutrição. A transfusão é administrada para substituir algo que o corpo perdeu, geralmente os glóbulos vermelhos que são necessários para transportar oxigênio e manter a pessoa viva.

     Como transfusão de sangue não é o equivalente a comer sangue, perde-se o “elo crítico” que seria necessário para apoiar biblicamente a posição da Sociedade Torre de Vigia a respeito do sangue.

 

A dúvida que afetou a vida de pessoas

    

     “Embora este médico argumente a favor do uso de certas frações do sangue, particularmente albumina, estas também estão sob a proibição das Escrituras.” (Despertai!, 8 de setembro de 1956, p. 20 [em inglês]).

     Estão sob “proibição das Escrituras” ou proibição da Torre de Vigia? Como pode perceber, o que a Torre hoje permite [albumina], antes ela proibia. Embora se trate de um assunto que envolva vidas humanas, ela evidenciou, ao longo dos anos, que não tem certeza dos detalhes restritivos que ensina. Mesmo assim ela gosta de brincar de ser Deus afetando a vida dos outros. As frações sangüíneas eram proibidas, depois foram permitidas, depois foram proibidas novamente, e depois foram outra vez permitidas. Observe abaixo o constante vai e vem da Torre de Vigia no seu conceito sobre as frações do sangue:

 

     1) Despertai!, 1º de fevereiro de 1956, p. 20: frações proibidas.
     2)  A Sentinela, 1º de fevereiro de 1959, pp. 95 e 96: frações permitidas.
     3)  A Sentinela, 15 de março de 1962, p. 174, §§ 16 e 19: frações proibidas.
     4) A Sentinela, 15 de julho de 1963, p. 443: frações proibidas.
     5) A Sentinela, 15 de outubro de 1974, p. 640: frações permitidas.
     6)    A Sentinela, 1º de dezembro de 1978, p. 31:  frações permitidas.

     Se você pesquisar as publicações antigas da Sociedade Torre de Vigia, notará que posições vacilantes também foram adotadas sobre os transplantes de órgãos e as vacinas. Considerava-se transplante de órgãos o mesmo que canibalismo, por causa da mesma linha de raciocínio sobre as transfusões de sangue, ou seja, colocar o sangue de uma pessoa em outra é o mesmo que se alimentar. (Qualquer notícia que a Sociedade encontrasse desfavorável ao transplante, publicava sem reservas). Disse a Torre de Vigia:

     “Notar que a posição das testemunhas cristãs de Jeová — de que tais transplantes são efetivamente uma forma de canibalismo — provaram ser uma salvaguarda” (Despertai!, 08/01/73, p. 28).

     Como sempre, a transferência de responsabilidade é o expediente padrão adotado. Uma opinião da Torre de Vigia é descrita como a opinião das Testemunhas de Jeová em geral. Faz-se ainda a arriscada afirmação que se abster de um transplante é sempre benéfico. Depois que a Torre aprendeu que essa analogia (transplante-canibalismo) não é correta, abandonou essa posição, mas somente no que tange aos transplantes de órgãos sólidos, e embora o sangue também seja um órgão (líquido), a Sociedade o excluiu do novo critério adotado. É a velha prática de dois pesos e duas medidas. No que diz respeito às vacinas, o rigor era ainda maior. Nas publicações mais antigas, entre 1920 e 1945, que não estão disponíveis no CD-ROM da Torre de Vigia, adotava-se uma posição altamente rigorosa sobre as vacinas, identificando-as com o Diabo e seus agentes. Publicações mais recentes também proibiam o uso de vacinas derivadas do sangue, que hoje são permitidas. – A Idade de Ouro, 1/05/29, p. 502; A Sentinela, 15/12/52; Despertai!, 08/04/70, p. 4; A Sentinela, 01/06/70, p. 347; A Sentinela, 01/03/76, p. 135.

 

Mais um exemplo revelador

     Considere outra circunstância, a que envolve a bomba coração-pulmão. Num artigo da Sentinela, a Torre de Vigia proibiu explicitamente o recolhimento de sangue antes da operação para uma transfusão autóloga (ou seja, usando o próprio sangue do paciente), mas permitiu outro procedimento:

    “Num processo um tanto diferente, o sangue autólogo pode ser desviado do paciente para um aparelho de hemodiálise (rim artificial), ou para uma bomba coração-pulmão. O sangue flui para fora através de um tubo até o órgão artificial que o bombeia e filtra (ou oxigena) e daí volta para o sistema circulatório do paciente. Alguns cristãos têm permitido isso, caso o equipamento não seja escorvado (posto a funcionar) com sangue estocado. Eles têm encarado a tubulação externa como uma extensão de seu sistema circulatório, de modo que o sangue possa passar através de um órgão artificial. Têm considerado o sangue nesse circuito fechado como ainda parte deles, não necessitando ser ‘derramado’.” (A Sentinela, 1/03/1989, p. 30). – note o velho jogo de palavras: “Alguns cristãos têm permitido isso...”, quando, na verdade, o que o escritor quer dizer é: “A Torre de Vigia tem permitido...”.

     Não é difícil perceber que a lógica que permite a bomba coração-pulmão também permite que se armazene o próprio sangue, se fosse permitido estabelecer esse critério de julgamento. Afinal, o único argumento contra o armazenamento do sangue vem de uma regra na Lei de Moisés que dizia que o sangue de um animal que era morto fosse derramado no chão. (Deuteronômio 12:24). Conforme diz o mesmo comentarista mencionado anteriormente, “seguir a regra demonstrava que a pessoa entendia que a vida do animal provinha de Deus”. Portanto, é evidente que tais raciocínios baseados na Lei mosaica não se aplicam às transfusões de sangue autólogo, porque ninguém morre quando é feita uma transfusão deste tipo. O sangue é devolvido à pessoa da qual foi retirado.

     As Escrituras são muito claras em afirmar que não se deve ir “além das coisas que estão escritas” (1 Coríntios 4:6). Todo esse conjunto de normas sobre qual fração sangüínea pode ou não pode ser usada, fere claramente o princípio citado por Paulo. A Bíblia não contempla esses detalhes, e ninguém está autorizado a fazer acréscimos às Escrituras. Além do mais, a proibição das Escrituras refere-se a usar o sangue como alimento, em respeito à vida que foi tirada para suprir a necessidade de nutrição de quem a tirou. Nenhum grupo de homens está autorizado a estabelecer regras proibitivas que só Deus seria capaz de fornecê-las, nem de afirmar presunçosamente que tais regras são orientações que descem da parte de Deus, pois Dele só desce “toda boa dádiva e todo presente perfeito”, e não orientações vacilantes que podem prejudicar a vida das pessoas. Cada cristão, mesmo um líder religioso, deve seguir o seguinte princípio: “Não pense mais de si mesmo do que é necessário pensar”. – Tiago 1:17; Romanos 12:3.

É claro que muito do que a Torre de Vigia publicou sobre os perigos do sangue, e o abuso que alguns fazem dele, é basicamente correto (embora assim como há pessoas que morrem ao receber sangue, há muitas outras que sobrevivem e riscos existem em qualquer procedimento medico). No entanto, essas ponderações não tem nada a ver com o preceito bíblico de se abster de sangue; apenas desvia a atenção do foco principal, a saber, que comer sangue não é o mesmo que uma transfusão, e que a proibição da Bíblia se refere a se alimentar do sangue de um animal que foi morto para servir de alimento. Durante anos pessoas escrevem para a Sociedade alertando da inconsistência de sua doutrina do sangue. Nesse ínterim muitos se prejudicam. Além disso, perceba que quando ela muda de opinião em momento algum ela faz referência à posição anterior e nem lamenta pelos transtornos que causou. Ao invés disso, sempre lança a responsabilidade para os irmãos, como se eles sozinhos tivessem chegado a tais conclusões. É simplesmente lamentável! (Evidentemente, querendo evitar processos judiciais, a Torre de Vigia não usa o termo "proibir". Mas, na prática, ela proíbe mesmo).

A Torre de Vigia também já foi alertada de que transfusão de sangue não é o mesmo que comer sangue. Conforme já vimos, uma pessoa inconsciente por vários dias num hospital recebendo apenas sangue nas veias  morrerá de fome, pois o organismo não assimilará o sangue como alimento. Sendo o sangue um tecido líquido o organismo o aceita de maneira semelhante a um transplante de órgão. Por isso a alimentação intravenosa que o paciente recebe não é sangue e sim outras substâncias nutritivas. Portanto, leitor, o ensinamento da Sociedade Torre de Vigia dos EUA que tem tido maior notoriedade junto ao público externo, precisa de uma séria revisão, por que do contrario, mais e mais pessoas morrerão sem nenhuma necessidade.

 

 

Perguntas sobre as quais refletir

    

   

    (01) De acordo com a Torre de Vigia, receber leucócitos (Glóbulos Brancos) numa transfusão é pecado, porque é o mesmo que comer sangue. No entanto, uma porção do leite materno, especialmente o colostro (aquele leite mais amarelado) que se manifesta nos primeiros dias de aleitamento, contém mais leucócitos do que uma quantidade equivalente de sangue.  Se receber leucócitos na veia é proibido, por que comê-los não é? Estaria Deus burlando a sua própria lei do sangue? Se ele nos proibisse de passar por um tratamento intravenoso à base de glóbulos brancos, criaria um sistema pelo qual os comemos literalmente, indo direto para o nosso sistema digestivo? Como você explica isso?

     (02) Se receber transfusão de sangue é o mesmo que comer sangue, por que uma pessoa que está inconsciente num hospital, se ficar recebendo apenas sangue na veia morrerá de fome?

     (03) A posição oficial da Torre de Vigia é que não se deve receber plaquetas na veia. Os derivados do sangue, tais como a albumina, porém, são permitidos.  As Testemunhas de Jeová imaginam que essas frações de sangue são “questão de consciência” porque são muito pequenas. No entanto, de todo sangue que há no corpo apenas 0,17% são plaquetas, enquanto que 2,2% é albumina. Por que é proibido 0,17% e permitido 2,2%?

    (04) Por que todos os credos cristãos, e mesmo os mais ortodoxos judeus, que são dependentes da Tora (lei), a lêem diariamente no hebraico original (para entender o contexto da tradição), filosofam sobre seu contexto, e amam a Lei de Deus mais do que suas próprias almas, não proíbem o uso médico do sangue? É razoável que sejamos os únicos a crer desta forma?

   (05) Se Gênesis 9:3-7 apresenta um "pacto eterno" que é válido para toda a humanidade, por que Paulo recomendou que se permaneça solteiro, e por que a Sociedade permite o uso do controle da natalidade, o qual seria uma clara violação do terceiro elemento do pacto: "E quanto a vós, homens, sede fecundos e tornai-vos muitos, fazei a terra pulular de vós e tornai-vos muitos nela"? Podemos escolher quais partes de um pacto eterno devemos manter? Se essas partes do pacto não são válidas, como ele pode ser um "pacto eterno"?

    (06) Se consumir sangue era uma ofensa capital, por que os homens de Saul não foram executados quando foram pegos ingerindo sangue junto com a carne que comiam? (1 Samuel 14:31-35).

     (07) Se, quando preciso, um israelita podia comer a carne de um animal não sangrado que tivesse morrido por si mesmo (veja Levítico 17:15), e o resultado era apenas uma impureza cerimonial que requeria um banho e a lavagem das roupas, por que a Sociedade diz que devemos desassociar (excomungar) aqueles que aceitam uma transfusão de sangue para salvar a vida?

     (08) Uma vez que a exigência de o sangue ser derramado ao solo está na Lei Mosaica, e não se repete nas Escrituras Gregas, e uma vez que os cristãos não estão submetidos à Lei Mosaica, por que seria errado armazenar o próprio sangue antes de uma operação?

     (09) Jesus estava disposto a fazer milagres no sábado a fim de salvar vidas, ou simplesmente curar os doentes, e ele não condenou a mulher com o fluxo de sangue por tocá-lo e fazê-lo cerimonialmente impuro. Aliás, ele condenava os fariseus por seu excessivo apego à Lei. Será que Jesus não faria uma exceção a uma regra dietética para salvar uma vida humana?

     (10) A maioria dos frangos "nao-kosher", encontrados em lanchonetes, armazéns e até no comércio de rua, são mortos por eletrocussão. Não há diferença entre estrangulamento e eletrocussão porque em ambos o sangue não é derramado. É por isso que a maioria dos frangos não é "kosher", isto é, não é aceitável pelos judeus. Assim sendo, por que é certo desobedecer a uma parte de Atos 15:29, mas morrer pela outra?

     (11) Como a Sociedade pode ver o mandamento de "abster-se de comer carne sacrificada aos ídolos" como simbolizando a questão da "Idolatria" em vez de uma regulamentação dietética, enquanto, ao mesmo tempo, vê "abster-se de comer sangue" como regulamentação dietética literal, e não como um símbolo da questão maior "Santidade da Vida"? Como eles podem ter uma diferença tão drástica de ponto de vista quando as duas observações sobre alimentação ocorrem na mesma frase e no mesmo versículo da Bíblia? (Atos 15:29).

     (12) Se concluirmos que alimentos oferecidos aos ídolos podem ser comidos, e que certos componentes ou frações do sangue podem ser usados, então uma pequena fração de fornicação não tem problema? Se não, por que não?

     (13) Recusar tratamento médico para seu filho quando a única alternativa seria a morte, faz de você responsável pela morte. Como se pode justificar a morte de uma criança com base numa regra judaica de preparação de alimentos?

     (14) Se uma transfusão de sangue é essencialmente um transplante de órgão (o sangue é um órgão em forma líquida), de que modo ela pode ser vista como "comer sangue", se não há digestão ou adição de benefícios nutricionais? Ela poderia ser um transplante de órgão e uma refeição ao mesmo tempo?

     (15) Se estocar o próprio sangue para uma transfusão autóloga é errado, então por que a Sociedade permite o uso de vários componentes sangüíneos que têm de ser doados e estocados antes de serem usados por Testemunhas de Jeová? Ainda mais, por que razão as Testemunhas aceitam e se beneficiam do sangue que outros doam, mas não doam elas próprias o seu sangue? Isso não é egoísta e hipócrita? Doar sangue para ajudar a salvar outras vidas não seria a atitude mais cristã e amorosa a se tomar?

     (16) Com que base a Sociedade usa as expressões "sustentar a vida" ou "introduzir" com respeito a aceitar uma transfusão, quando tais palavras não aparecem na Bíblia?

     (17) Por que a Sociedade tem de citar médicos que viveram há centenas de anos para achar apoio para sua crença de que uma transfusão é alimentação de sangue? Acaso os médicos modernos não admitem que uma transfusão de sangue é o mesmo que "comer" o sangue? Por que não?

     (18) Por que a sociedade exagera os riscos das transfusões de sangue, e faz parecer que elas são sempre um mau remédio, quando quase todos os especialistas discordam?

     (20) Como a Sociedade decide quais componentes sangüíneos são "maiores" e quais são "menores"? Por exemplo, por que os glóbulos brancos são proibidos e a albumina é permitida, se esta última constitui uma grande porcentagem do volume sangüíneo, e o leite materno e os órgãos transplantados estão cheios desses glóbulos?

     (21) Por que é que o plasma é proibido, se todos os seus componentes, exceto a água, estão na lista de aprovados para as Testemunhas tomarem a fim de "sustentar a vida"?

     (22) Por que a Sociedade usa argumentos e analogias como a sobre álcool e sangue sendo injetados nas veias, cujo erro evidencia-se com esta outra analogia:  A título de comparação, considere um homem a quem o médico diz para se abster de carne. Ele estaria sendo desobediente se parasse de comer carne, mas aceitasse um transplante de rim? Receber um rim transplantado é o mesmo que comer carne? Por que a Sociedade tem de usar truques intelectuais sujos para dar suporte à sua postura?

     (23) Se devemos nos abster completamente do sangue, como diz a Sociedade, então por que a Sociedade também nos diz que é aceitável usar derivados ou componentes de sangue humano? Isto não é contraditório?

     (24) A Torre de Vigia costuma dar destaque aos tratamentos alternativos de alta qualidade, usados no lugar de transfusões de sangue. Irmãos falam com orgulho que usaram remédios como a eritropoietina ao invés de sangue. Mas eles não se apercebem que um dos componentes dessa medicação é um derivado sangüíneo (albumina humana)! No passado, muitas Testemunhas de Jeová não puderam se beneficiar dessas frações sangüíneas porque a Torre de Vigia não permitia. Ela disse certa vez: "É errado suster a vida mediante infusões de sangue, plasma, glóbulos vermelhos, ou várias frações do sangue? Sim!" - A Sentinela, 15/03/1962, p. 174. Notou como ela foi categórica ao dizer que é errado aceitar frações sangüíneas? No entanto, ela abandonou essa opinião, que era imposta ao seu rebanho. Hoje em dia ela ensina: "A ordem bíblica de se abster de sangue, também inclui suas frações? Não podemos afirmar isso." - Ministério do Reino demarço de 2007 (suplemento). -> Ué! E por que afirmavam?

     (25) Que devo fazer? Meu filho está respirando com muita dificuldade. Sua contagem sangüínea está perigosamente baixa. Seu ritmo cardíaco já é de 200p/min, e está aumentando. Os médicos nos disseram que se não houver uma transfusão, ele morrerá de insuficiência respiratória e parada cardíaca. Expansores de plasma não ajudarão a esta altura, ele precisa de mais glóbulos vermelhos. Horrivelmente pálido e com os olhos muito abertos, ele olha para mim e sussurra: "Ajude-me, papai". Devo deixar meu filho morrer baseado na palavra de uma organização que tem freqüentemente mudado sua opinião sobre transplante de órgãos, vacinas, frações de sangue, deveres civis, "as ovelhas e os cabritos", a "geração", 1799, 1874, 1878, 1881, 1914, 1918, 1920, 1925, 1975, etc., etc., etc. ? Devo deixar meu filho, a minha criança, morrer? É isto realmente o que Jeová e Jesus esperam que eu faça? Como eu me sentirei se a proibição do sangue finalmente se tornar apenas mais uma velha luz e a doutrina for abandonada? Serei !! capaz de me perdoar?

     Se você, de forma honesta e sincera consegue achar respostas satisfatórias e razoáveis para os questionamentos acima, então eu aceitarei a doutrina do sangue imposta pelo corpo governante das Testemunhas de Jeová. Caso contrário, o que posso fazer é apenas lamentar tantas mortes totalmente desnecessárias e sem sentido que muitos tiveram ao seguir esta infeliz doutrina.    



    Será que a Bíblia realmente proíbe as transfusões de sangue?

 

Muitas Testemunhas de Jeová são bem sinceras em apegar-se aos padrões da sua organização a este respeito. Algumas até viram filhos pequenos morrerem em resultado disso, e seria cruelmente injusto atribuir isto à falta de amor dos pais. Eles simplesmente aceitaram que os padrões e normas organizacionais ― embora complexos e até confusos ― são baseados na Bíblia e, portanto, ordenados por Deus. Todavia, poucas afirmações tiveram base mais frágil que essa. Como se observa, muito da argumentação da Torre de Vigia concentra-se em textos das Escrituras Hebraicas, principalmente das ordenanças da Lei Mosaica. Visto que a Sociedade reconhece que os cristãos não estão debaixo dessa Lei, o texto de Gênesis, capítulo 9, versículos 1-7, é freqüentemente citado. Ele diz:

     “E o medo de vós e o terror de vós continuará sobre toda criatura vivente da terra e sobre toda criatura voadora dos céus, sobre tudo o que se está movendo no solo, e sobre todos os peixes do mar. Na vossa mão estão agora entregues. Todo animal movente que está vivo pode servir-vos de alimento. Como no caso da vegetação verde, deveras vos dou tudo. Somente a carne com a sua alma ― seu sangue — não deveis comer. E, além disso, exigirei de volta vosso sangue das vossas almas. Da mão de cada criatura vivente o exigirei de volta; e da mão do homem, da mão de cada um que é seu irmão exigirei de volta a alma do homem. Quem derramar o sangue do homem, pelo homem será derramado o seu próprio sangue, pois à imagem de Deus fez ele o homem. E quanto a vós, homens, sede fecundos e tornai-vos muitos, fazei a terra pulular de vós e tornai-vos muitos nela.

     Alega-se que, como todos os humanos descendem de Noé e seus filhos, estas ordens ainda se aplicam a todas as pessoas. Sugere-se que as ordenanças sobre o sangue na Lei Mosaica devem por isso ser vistas simplesmente como repetições ou considerações adicionais da lei básica anteriormente estabelecida, e que, portanto, ainda vigoram. De outro modo, já que os cristãos não estão sob a Lei Mosaica, não faria sentido citar textos dela como tendo relevância no assunto. Afirma-se que o decreto divino sobre o sangue dado a Noé tem aplicação eterna. Se for assim, não devemos então aplicar isso também à ordem seguinte, “sede fecundos e tornai-vos muitos”, e “fazei a terra pulular de vós e tornai-vos muitos nela”? Se for assim, como pode a Sociedade Torre de Vigia justificar o incentivo, não só a ficar solteiro, mas até a não ter filhos, no caso das Testemunhas casadas? Sob o título “Ter Filhos Hoje”, A Sentinela de 1º de março de 1988 (página 21) diz que, em vista do “tempo limitado” que resta para terminar a obra de testemunho, “é apropriado que os cristãos perguntem a si mesmos até que ponto o casar-se, ou terem filhos, caso sejam casados, afetará a sua participação nessa obra vital”. O artigo admite que criar filhos fazia parte da ordem de Deus após o dilúvio, mas declara (página 26) que “Atualmente, gerar filhos não é especificamente parte da tarefa dada por Jeová a seu povo... Portanto, ter filhos ou não neste tempo do fim é um assunto pessoal que todo casal precisa decidir por si mesmo. Contudo, visto que ‘o tempo que resta é reduzido’, os casais farão bem em pesar cuidadosamente e com oração os prós e os contras de se ter filhos nestes tempos.” Se as palavras de Jeová a Noé a respeito de criar filhos e ‘pulularem e serem fecundos’ podem ser postas de lado como não mais aplicáveis, como podem coerentemente argumentar que as palavras Dele a respeito do sangue têm de ser encaradas como ainda em vigor, e usar isso como base para justificar a aplicação das ordenanças da Lei Mosaica sobre o sangue como ainda em vigor para os cristãos hoje? 

Mais significativo, contudo, é que fazem essas palavras em Gênesis dizerem algo muito diferente do que de fato dizem. Qualquer leitura do texto deixa claro que Deus ali fala de sangue inteiramente em relação a matar animais e depois em relação a matar humanos. No caso dos animais, o sangue era derramado no solo em reconhecimento evidente de que a vida sacrificada desse modo (para alimento) só era tomada por permissão divina, não por direito natural. No caso do homem, seu sangue exigia a vida daquele que o derramava, sendo a vida humana um dom de Deus que o homem não foi de modo algum autorizado a tirar  à  vontade. O sangue  derramado  de animais  mortos  e  humanos assassinados representa a vida que eles perderam. O mesmo ocorre no caso dos textos da Lei Mosaica regularmente citados, que requerem que o sangue seja “derramado”. Em todos os casos, isto se refere claramente ao sangue dos animais que foram mortos. O sangue representava a vida tirada, não a vida ainda ativa na criatura.

As transfusões de sangue, contudo, não são resultado da morte de animais ou humanos, pois o sangue vem de um doador vivo que continua a viver. Em vez de representar a morte de alguém, esse sangue é utilizado exatamente com objetivo oposto, a saber, a preservação da vida. Não existe nenhuma relação real ou paralelo entre a ordem de Gênesis a respeito de matar e depois comer o sangue do animal morto, e o uso de sangue numa transfusão. O paralelo simplesmente não existe. Finalmente, usar leis que ordenam o derramamento do sangue como base para condenar sua armazenagem é ignorar o propósito declarado dessas leis. Segundo o contexto, ordenou-se aos israelitas que derramassem no solo o sangue dos animais que matavam para garantir que o sangue não seria comido, não para garantir que não seria guardado. A armazenagem nem estava em discussão. Empregar tais leis desse modo não só é ilógico como é pura manipulação da evidência, forçando-as a significar algo que não é declarado ou mesmo sugerido. Como os cristãos não estão sob um código de leis, mas sob a “lei régia do amor” e a “lei da fé”, estes pontos merecem certamente séria consideração e meditação. Mostra verdadeiro apreço pelo valor da vida permitir que normas arbitrárias ditem como se deve proceder em situações cruciais? Demonstra amor a Deus e ao próximo fazer isto sem apoio de declarações claras na Palavra de Deus?

Sem dúvida, o principal texto bíblico usado na argumentação da Torre de Vigia é o de Atos 15:28, 29. Estes versículos trazem a decisão de um concílio em Jerusalém e incluem as palavras: “Persisti em abster-vos de coisas sacrificadas a ídolos, e de sangue, e de coisas estranguladas, e de fornicação.” A evidência bíblica de que isto não foi dito como uma forma de declaração com efeito obrigatório legal, será considerada mais adiante neste capítulo. Este assunto é vital visto que é a base principal para o argumento da Sociedade de que as ordenanças da Lei Mosaica são transferíveis para o cristianismo. Embora tratemos deste ponto mais adiante, podemos logo dizer que a exortação para se “abster do sangue” refere-se claramente a comer sangue. A Sentinela de 1º de dezembro de 1978 (página 23), de fato, cita o professor Eduard Meyer dizendo que o significado de “sangue” neste texto é “tomar sangue que  era  proibido  pela lei  (Gêneses 9:4) imposta a Noé, e, assim, também à humanidade como um todo.” Esse “tomar” era por meio de comer.

Uma questão vital, pois, é se pode ser demonstrado que transfundir sangue é o mesmo que “comer” sangue, como pretende a organização Torre de Vigia. Não há, na realidade, base sólida para essa pretensão. Há, é claro, métodos clínicos de “alimentação intravenosa” na qual líquidos especialmente preparados contendo nutrientes, como a glicose, são introduzidos nas veias e fornecem nutrição. Contudo, como sabem as autoridades médicas e como a Sociedade Torre de Vigia às vezes admitiu, uma transfusão de sangue não é alimentação intravenosa; é de fato um transplante (de um tecido fluido), e não infusão de um nutriente. No transplante de rim, o rim não é comido como alimento pelo novo corpo em que é introduzido. Continua a ser um rim com a mesma forma e função. Ocorre o mesmo com o sangue. Ele não é digerido como alimento quando “transplantado” para outro corpo. Continua a ser o mesmo tecido fluido, com a mesma forma e função. As células do corpo não podem utilizar esse sangue transplantado como alimento. Para fazê-lo, o sangue teria primeiro de passar pelo sistema digestivo, ser decomposto e preparado de modo que as células do corpo pudessem absorvê-lo, assim, apenas sendo real e literalmente comido é que ele poderia servir de alimento.

Quando os profissionais médicos acham necessária uma transfusão de sangue não é porque o paciente está subnutrido. Na maioria dos casos é porque o paciente sente falta de oxigênio, não de nutrientes, e isto se deve à falta de portadores de suprimento adequado de oxigênio, a saber, os glóbulos vermelhos do sangue, que levam oxigênio. Em outros casos, administra-se sangue devido à falta de outros fatores, como os agentes coagulantes (como as plaquetas), imunoglobulina contendo anticorpos ou outros elementos, mas, novamente, este não é um meio de prover “nutrição”.

     No esforço de contornar a evidência de que transfundir sangue não é o mesmo que comer, nem tem como objetivo “nutrir” o corpo, a Torre de Vigia tenta muitas vezes ampliar arbitrariamente o assunto pondo juntos, ou até substituindo, o termo “nutrir” pela expressão “sustentar a vida”. Esta tática de desvio só serve para confundir a questão. Nutrir o corpo por comer, e sustentar a vida, não são coisas idênticas. Comer é apenas um dos meios de sustentar a vida. Sustentamos a vida de muitos outros modos, igualmente vitais, como respirar, beber água ou outros líquidos, manter o calor do corpo numa temperatura adequada, e dormir ou descansar. Quando se referem ao sangue, as próprias Escrituras não tratam do aspecto amplo de “sustentar a vida”, mas do ato específico de comer sangue, e referem-se claramente a comer o sangue de animais que são mortos. Quando um israelita comia carne que continha sangue, ele não dependia desse sangue para “sustentar” sua vida — a carne sozinha faria isso tão bem sem o sangue ou com ele. Se a vida dele era ou não “sustentada” por comer o sangue simplesmente não vinha ao caso. O ato de comer sangue era proibido, e a motivação ou as conseqüências finais por comê-lo não foram mencionadas nas leis do sangue.

A organização Torre de Vigia permite que seus membros recebam frações de sangue que são geralmente administradas exatamente para salvar ou “sustentar” a vida da pessoa, como no caso do Fator VIII, administrado aos hemofílicos, ou como no caso da imunoglobulina, injetada como proteção contra certas doenças perigosas ou para evitar a morte de crianças por incompatibilidade de Rh. Em nenhuma parte da Bíblia encontramos tal restrição sobre o sangue com o termo “sustentar a vida”. Esse palavreado confuso da Sociedade Torre de Vigia é tanto desonesto como irresponsável e obscurece a verdade da palavra de Deus, indo "além das coisas que estão escritas." (1 Coríntios 4:6)

 

 ‘Abstende-vos de sangue’

    

    A carta enviada pelos apóstolos e anciãos de Jerusalém, registrada em Atos capítulo 15, usa o termo “abster-se” em relação a coisas sacrificadas a ídolos, sangue, coisas estranguladas e fornicação. O termo grego que eles usaram (apékhomai) tem o significado básico de “afastar-se de”. As publicações da Torre de Vigia argumentam que, em relação ao sangue, ele tem um sentido total, abrangente. Assim, a publicação Poderá Viver Para Sempre no Paraíso na Terra, página 216, diz: “Abster-se do sangue’ significa definitivamente não introduzi-lo em seu corpo.” De modo similar, A Sentinela de 1º de maio de 1988, página 17, diz: “Andar nas pisadas de Jesus significaria não introduzir sangue no corpo, seja oralmente, seja de outro modo.”

     Mas será que este termo, como é usado nas Escrituras, tem realmente o sentido absoluto indicado nestas publicações? Ou pode, em vez disso, ter sentido relativo, relacionado com uma aplicação específica e limitada? 

     Que pode ser aplicado, não num sentido total, abrangente, mas de modo limitado, específico, pode-se ver no seu uso em textos como 1 Timóteo 4:3. Ali o apóstolo Paulo avisa que alguns professos cristãos introduziriam ensinos de natureza perniciosa, “proibindo o casar-se, mandando abster-se de alimentos que Deus criou para serem tomados com agradecimentos”. Não queria dizer, é claro, que estas pessoas ordenariam a outros que se abstivessem totalmente, sob qualquer forma, de todos os alimentos criados por Deus. Isso significaria jejum total e levaria à morte. Ele se referia obviamente à proibição de alimentos específicos, evidentemente os proibidos pela Lei Mosaica.

     De modo similar, em 1ª Pedro 2:11 o apóstolo admoesta:

     Amados, exorto-vos como a forasteiros e residentes temporários a que vos abstenhais dos desejos carnais, que são os que travam um combate contra a alma.

      Se tomássemos esta expressão literalmente, em sentido absoluto, significaria que não podemos satisfazer nenhum desejo da carne. Certamente não é esse o significado das palavras do apóstolo. Temos muitos “desejos carnais”, incluindo o desejo de comer, de respirar, de dormir, de recreação e muitos outros desejos, que são perfeitamente apropriados e bons. Portanto, “abster-se de desejos carnais” aplicava-se apenas no contexto do que o apóstolo escreveu, referindo-se, não a todos os desejos carnais, mas apenas a desejos prejudiciais, pecaminosos, que de fato “travam um combate contra a alma”.

      Portanto, a questão é: Em que contexto Tiago e o concílio apostólico usaram a expressão “abster-se” de sangue? O próprio concílio tratava especificamente da tentativa de alguns de exigir que os cristãos gentios fossem, não só circuncidados, mas também “observassem a lei de Moisés”. Era esse o assunto a que o apóstolo Pedro se referia, a observância da Lei Mosaica, que ele descreveu como “jugo” pesado. Quando Tiago falou perante o concílio e recomendou que os cristãos gentios fossem aconselhados a abster-se de certas coisas ― coisas poluídas por ídolos, fornicação, coisas estranguladas e sangue ― ele declarou em seguida: 

     Pois, desde os tempos antigos, Moisés tem tido em cidade após cidade os que o pregam, porque ele está sendo lido em voz alta nas sinagogas, cada sábado.

     Sua recomendação, portanto, evidentemente levou em conta o que as pessoas ouviam quando ‘Moisés era lido’ nas sinagogas. Tiago sabia que nos tempos antigos havia gentios, “pessoas das nações” que moravam na terra de Israel, residindo no meio da comunidade judaica. Que requisitos lhes impunha a Lei Mosaica? Não exigia que fossem circuncidados, mas exigia que se abstivessem de certas práticas que são descritas no livro de Levítico, capítulos 17 e 18. Essa lei especificava que, não só os israelitas, mas também os “residentes forasteiros” entre eles tinham de abster-se de participar em sacrifícios idólatras (Levítico 17:7-9), de comer sangue, inclusive o de animais mortos não sangrados (Levítico 17:10-16) e de práticas classificadas como sexualmente imorais (inclusive incesto e práticas homossexuais). — Levítico 18:6-26.

Embora a própria terra de Israel estivesse então sob controle gentio, com grande número de judeus vivendo fora dela, em vários países (estes eram chamados de “Diáspora”, que significa os “dispersos”), Tiago sabia que em muitas cidades por todo o Império Romano a comunidade judaica era como um microcosmo que refletia a situação da Palestina dos tempos antigos, na qual era muito comum os gentios assistirem às reuniões dos judeus na sinagoga, misturando-se assim com eles.

Os próprios cristãos primitivos, tanto judeus como gentios, continuaram a freqüentar estas reuniões nas sinagogas, e até sabemos que Paulo e outros fizeram ali muito de sua pregação e ensino. A referência de Tiago à leitura de Moisés nas sinagogas numa cidade após outra, certamente dá motivos para crer que, ao enumerar as coisas que mencionara imediatamente antes, ele tinha em mente as abstinências que Moisés estabelecera para os gentios que pertenciam à comunidade judaica nos tempos antigos.

Como vimos, Tiago alistou não só as mesmíssimas coisas que estão no livro de Levítico, mas até na mesmíssima ordem; abstenção de sacrifícios idólatras, sangue, coisas estranguladas (não sangradas) e imoralidade sexual. Ele recomendou a observância dessas mesmas coisas por parte dos crentes gentios e a razão evidente para esta abstenção era a situação então prevalecente, a presença de judeus e gentios nas reuniões cristãs e a necessidade de manter paz e harmonia nessa situação. Quando os cristãos gentios foram instados a ‘abster-se de sangue’, isto devia ser entendido, claramente, não num sentido total e abrangente, mas no sentido específico de refrear-se de comer sangue, algo abominável para os judeus.

É significativo que Tiago não incluiu coisas como assassinato ou roubo entre as ações de que se deviam abster. Essas coisas já eram condenadas tanto pelos gentios em geral como pelos judeus. Mas os gentios toleravam a idolatria, toleravam comer sangue e comer animais não sangrados e toleravam a imoralidade sexual, tendo até “prostitutas de templo” em locais de adoração. Portanto, as abstenções recomendadas visavam os  costumes  gentios que eram mais propensos a ofender seriamente os judeus e resultar em atritos e perturbações. A Lei Mosaica não exigira a circuncisão dos residentes forasteiros como condição para viver em paz em Israel, nem Tiago exigiu isto.

     A carta que resultou da recomendação de Tiago foi dirigida especificamente aos cristãos gentios, pessoas “das nações”, em Antioquia, Síria e Cilícia (regiões vizinhas ao norte de Israel) e, como vimos, tratava do assunto específico da tentativa de exigir que os crentes gentios “observassem a lei de Moisés”. A carta tratava das áreas de conduta mais propensas a criar dificuldades entre os crentes judeus e gentios. Não há nada que indique que a carta pretendia ser vista como “lei”, como se as quatro abstenções formassem um “Quadrálogo”, em substituição ao “Decálogo” dos Dez Mandamentos da Lei Mosaica. Era um conselho específico para uma circunstância específica, prevalecente naquele período da história.

Tanto é assim que o Apóstolo Paulo escrevendo algum tempo depois sua 1ª carta aos Corintios, no capitulo 8, ele fala sobre a questão do alimento oferecido a ídolos que depois era comido por alguns cristãos. Em Corinto, alguns cristãos  estavam indo a templos de ídolos onde essa carne sacrificada era depois cozida e servida (por um preço) nos recintos do templo pagão.

Para um cristão, comer ali era, aos olhos de muitos de seus condiscípulos ― especialmente os de origem judaica ―  comparável ao modo como as Testemunhas de Jeová veriam hoje um de seus membros participar de uma ceia na igreja, com alimento previamente abençoado pelos padres e servido na catedral católica romana, com o dinheiro pago pela refeição revertido para a igreja. Como, então, tratou o apóstolo do assunto? Ameaçou ele os que comiam esta carne, advertindo-os dos procedimentos judicativos e da provável desassociação? Apelou para a lei, um conjunto de regras, como meio de restringir esta prática?

Ao contrário, ele mostrou que a ação em si mesma não era condenável, deixando bem claro que o ídolo em si não é nada e que para o cristão o fato de um alimento ter sido oferecido em um templo a algum ídolo para depois ser consumido não mudaria em nada sua relação com Deus, mas poderia talvez causar tropeço a algum co-irmão. Se alguém comia ou não comia, portanto, não dependeria da lei e do receio de ser considerado culpado de violar uma lei. Dependeria do amor e do receio de não prejudicar um irmão “por quem Cristo morreu”, realmente uma atitude superior que faria o cristão revelar o que tinha no coração, e não simplesmente a submissão a uma regra.

O mesmo conselho demonstra que o apóstolo não encarava a decisão dos apóstolos e outros em Jerusalém (registrada no capítulo 15 de Atos) como uma “lei”. Se fosse uma lei, Paulo nunca teria escrito como fez aos cristãos em Corinto, dizendo francamente que comer ou não comer alimento oferecido a ídolos era questão de consciência, e o fator determinante era se comer faria outros tropeçar ou não. Tanto Atos 15:29 como 1ª Coríntios 8:4 usam exatamente a mesma palavra grega. Em ambos os textos a palavra é eudolóthutos, conforme se pode confirmar consultando a Kingdom Interlinear Translation [Tradução Interlinear do Reino] da Sociedade Torre de Vigia.

No entanto, a Tradução do Novo Mundo, que afirma ser uma tradução literal, diz "coisas sacrificadas a ídolos" em Atos 15:29 e "alimentos oferecidos a ídolos" em 1 Coríntios 8:4, não havendo qualquer outra razão [para traduzir a mesma palavra (eudolóthutos) de modo diferente nos dois textos] que não seja esconder as similaridades. Não há nada no contexto, ou na expressão, que indique que Atos se refere a qualquer outra prática além de comer carne oferecida a ídolos. Estes dois textos juntos provam que o texto em Atos 15:28, 29 não é um mandamento universal.

     Encarar a carta de Jerusalém como lei e, com base nisso, pretender que sua menção ao sangue indica que os cristãos permanecem sob as ordenanças da Lei Mosaica a respeito do sangue, é ignorar claramente as declarações do apóstolo Paulo, na questão dos “alimentos oferecidos a ídolos”, mostrando que tal raciocínio não é válido. Se nenhum tropeço era provável, ninguém então podia corretamente julgar Paulo ou algum outro cristão por comer tal alimento. Com respeito à imoralidade sexual (ou “fornicação”, em algumas traduções), também incluída na carta de Jerusalém, o apóstolo não apresenta isto como algo que pode ser certo ou errado, dependendo de causar tropeço ou não. Ele evidentemente a encarava como não tendo nenhuma justificativa.

Portanto, fica evidente que Paulo encarava de maneira diferente as quatro questões registradas em Atos 15:28, 29. Para ele a fornicação não era questão de consciência, mas agora abster-se de coisas sacrificadas a ídolos era. Fica claro que as abstenções de Atos eram uma tentativa de resolver algumas dificuldades de relacionamento entre cristãos judeus e gentios, uma maneira de tornar a convivência entre eles mais harmoniosa. Levar a questão além disso, tentando fazer do sangue em si uma espécie de “tabu”, é tirá-la do seu contexto bíblico e histórico e impor-lhe um significado que de fato não existe. 

     É injusto e desamoroso condenar os que aceitam transfusões de sangue para preservar sua vida ou a vida de entes queridos por que eles não se apegaram a certas regras e proibições originadas de uma organização religiosa. É injusto condenar a tais por que simplesmente não há base bíblica válida, ou qualquer outra, para fazê-lo. Tentar sobrecarregá-los com um sentimento de culpa que é imposto por padrões humanos e não por padrões divinos é desonesto e cruel.

Finalmente, aqueles que hoje insistem em argumentar sobre leis dietéticas fariam bem em acatar o seguinte aviso do próprio Jesus Cristo:

"Não há nada de fora dum homem passando para dentro dele que possa aviltá-lo; mas as coisas que procedem do homem são as que aviltam o homem... Outrossim, ele disse: O que sai do homem é o que avilta o homem;  pois, de dentro, dos corações dos homens, saem raciocínios prejudiciais: fornicações, ladroagens, assassínios, adultérios, cobiças, atos de iniqüidade, fraude, conduta desenfreada e um olho invejoso, blasfêmia, soberba, irracionalidade. Todas estas coisas iníquas saem de dentro e aviltam o homem” (Marcos 7:15, 20-23).

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Publicado em TESTEMUNHAS DE JEOVÁ